O trem corria pelo seu caminho determinado, cortando a mata e o campo que já tinham sido cortados para ele antes. Trens sempre pareciam estar abrindo caminho, imponentes e determinados a ultrapassar velocidades, mas na verdade eles só estavam percorrendo a mesma coisa que outros fizeram antes. Seguindo um caminho determinado – um trilho – e chamando aquele caminho de seu. Trens são grandes plagiadores, de certa forma. Ou era isso que refletia Marília enquanto olhava pela janela. Ela não tinha nenhuma intenção de estar naquele veículo, mas não tivera muita escolha. Era onde estava agora e nada poderia mudar.
Pessoas passaram do outro lado da porta da cabine privativa que ela estava dividindo com aquele estranho e Marília levantou os olhos para acompanhar os vultos. Seus dedos foram para o colar que tinha enrolado ao redor do pescoço. O pingente parecia parte da corrente, ele parecia ser uma grande continuação daquele ferro gelado. Era lindo, mas, ao mesmo tempo, uma lembrança incômoda de outros tempos para os quais ela nunca iria poder voltar. Ela e o estranho estavam buscando novos caminhos e, também, estavam sendo obrigados a buscar. Ela pelo simples fato de que a vida como ela conhecia não existia mais. Ele porque era o seu trabalho. Marília suspirou passando as mãos pelo cabelo em um gesto de confusão e o homem, sentado na sua frente, levantou os olhos azuis para lhe encarar.
— What’s wrong, Marília? — Ele questionou, seu sotaque saindo de um filme que ela tinha visto há muito tempo. O inglês era intragável para ela, pensando em português, sentindo em português, respirando em outro sentido completo. Marília estava completamente deslocada de qualquer coisa que pudesse conhecer. Ele não falava a sua língua, ela falava a dele por um simples fator de globalização. Se pudesse escolher, nunca teria saído do Brasil. Não pudera escolher, agora estava envolvida nessa história. Espionagem, mistério, vingança, agentes secretos. Tudo começou em uma tarde quando Marília estava escrevendo, na sua casa. Ela só queria poder voltar para aquela tarde e não ter feito nenhuma daquelas palavras vir a vida.
Bond, James Bond; era como ele tinha se apresentado. Como em todos os filmes e novelas, ela logo se viu envolta naquela trama de mistério que não poderia escapar. Apesar dos seus motivos não serem muito claros, ela lhe acompanhou para outro continente e foi com ele tentar desvendar aquela história, aquele crime. Marília era uma Bond Girl por obrigação literária. Estava presa em uma história escrita por outras pessoas, pessoas que não faziam a menor ideia como mulheres funcionavam. Ela suspirou, pensando em todas as coisas que poderia estar fazendo naquele momento. No lugar, ela estava escrita que deveria ter tensão sexual com James acontecendo. Então Marília piscou longamente, seus cílios avantajados pelos postiços brilhando enquanto olhava para o homem à sua frente com um olhar desejoso.
Ela não sentia nada disso, mas a mão divina escrevendo a cena queria. Então acontecia. Marília, infelizmente, não tinha escolha.
— James. — Ela lhe chamou, sua voz soando como veludo, bem diferente do timbre que Marília geralmente teria. Ela tinha uma voz sonora, sim, mas era esguia, firme, pontiaguda. Não esse tipo de voz que seduz, que abraça o ego de um homem com carinho. Marília não tinha paciência para o ego de homens. Mas o escritor queria que ela tivesse, então, naquele momento, ela teve. Ela passou uma das mãos pelo lado do cabelo, colocando uma mecha que tampava a sua visão para trás da orelha. Seus dedos encostaram no seu rosto enquanto descia, de leve, passando os olhos pelo homem na sua frente. Ele tinha um corpo bem cuidado, porém comum. Era um herói de cinema comum. Mas o escritor queria que ela o achasse incrível, então ela achava.
Suspirou novamente, resignada. Adiantava lutar quando tinha sido sugada da sua realidade plena para uma realidade bidimensional? Quando tinha deixado de ser uma mulher de carne e osso para se tornar uma versão de escrita pobre em um blockbuster? Como isso aconteceu não faz diferença nesse ponto, não para Marília. Ela só queria voltar ao seu normal. Mas isso talvez só acontecesse ao final do mistério. Ou nem acontecesse. Afinal, o que acontece com Bond Girls nos novos filmes? Elas morrem muito. Marília não queria morrer, mas também não queria estar aqui. Ela não tinha nenhum controle da sua narrativa mais. Tudo isso estava com o escritor. — I’m not controlling any of my moves, James. What can I do? —, confessou em um questionamento. Talvez Bond, o grande agente secreto, pudesse resolver o seu problema.
Ele lhe sorriu, como se tivesse ouvido uma coisa totalmente diferente. Talvez fosse o tom romântico que ela tinha dito, um tom forçado dentro daquela estética. O escritor queria que fosse assim, então era assim. Afinal, James levantou e colocou uma das mãos ao lado do seu ombro no banco. Ele tinha um sorriso sedutor no rosto e Marília se perguntou se ele também não queria fazer aquilo. Se ele também estava sendo obrigado a fazer pela mão que tudo escreve. Novamente, ela colocou a mão sobre o colar, como se ele guardasse a chave para que saísse dessa realidade. Talvez ele tivesse um broche da mesma forma que também fosse o que lhe prendia a esse plano. Bond lhe roubou um beijo e a trilha sonora sobe, emitindo que é a hora para a cena romântica do filme. Do jeito como o roteirista quer.